Como estou me reeducando para evitar hábitos de super-produtividade tóxica: Uma breve historia

← ← ←   7/27/2022, 12:14:47 AM | Posted by: Felippe Regazio


Quando tomei a terceira dose da vacina contra COVID eu acabei sentindo efeitos colaterais bem fortes. Eu não havia sentido nada na primeira e segunda dose, mas a terceira me pegou em cheio: nausea, dor no corpo, dor de cabeça, coriza, cansaso, enfim: o pacote completo de dor e miserabilidade haha.

Eu tava deitado no sofá enrolado em cobertas, sentindo calafrios e com o nariz assado quando senti uma espécie de paz, aquela típica paz de tarde de domingo quando ta tudo certo (como dois e dois são cinco). Simplesmente me veio uma brisa de tranquilidade e eu fiquei pensando: por que diabos eu tô só o bagaço e ainda assim me sentindo tão bem?

A resposta foi uma imensa "red flag" a respeito de como eu estava organizando minha vida: eu estava tranquilo porque eu havia me livrado do peso da auto-cobrança e da necessidade de super produtividade. Estar "doente" era a fuga perfeita que o meu cérebro precisava pra finalmente descansar. Eu estava tranquilo porque, como eu estava só a capa da gaita, meu cérebro deu um tempo. Estudo, projeto, inovação, execução de código, gestão de vida, planejamento puff... eu não tava em condições. Minha cabeça deu um grande foda-se automático que há anos eu não tinha, eu senti a paz do esgotamento inevitável, e me lembrei o que é de fato o que era descansar a cabeça. Daí eu percebi que muitas vezes eu ACHAVA que estava descansado, quando eu estava apenas confundindo descanso com estar parado.

Eu não quero se um super herói

Foi um longo até minha cabeça virar essa zona de hiper-produtividade tóxica e incessante, mas em algum momento da minha vida essa corrida foi de fato necessaria, mas com o tempo tornou-se puro vício somado a outros fatores como romantização da árdua caminhada, auto-heroificação, estimulos externos e a pior de todas: medo.

Quando eu era freelancer, até que decidi arrumar um trampo formal. Comecei de baixo, como estagiario. Eu pegava 6 onibus para trabalhar: 3 pra ir e 3 pra voltar. Eu ia estudando e voltava estudando, não tinha muito o que fazer no ônibus. Quando eu chegava em casa eu tomava banho, terminava meus afazeres e ia pro computador estudar, executava projetos pessoais e fazia algumas experimentações até uma ou duas da manhã. Eu tinha uma meta clara: aprender o bastante pra assumir que eu era bom no que estava fazendo: programar.

No meu segundo emprego eu já estava mais tranquilo, trabalhava remoto, estava mais confiante do meu conhecimento, era parte de um time hiper produtivo e organizado e tinha um chefe compreensivo e humano, realmente preocupado com prazos factíveis e com a saúde do time. É de se pensar que daí eu pisaria um pouco no freio né? De forma alguma, eu não descansei, eu preenchi esse espaço de conforto com mais estudo, prática, pesquisa, análise, mais projetos pessoais, leitura, etc etc. No pain no gain. Era a meta: estudar e praticar até me convencer de que eu era bom no que estava me propondo a fazer. Conselho nenhum me convenceria a parar, e o pior: conselho nenhum tentou me convencer a parar, pelo contrário: a maioria do conteúdo que eu via por aí dizia o contrário, e às vezes ainda me dava a impressão de que talvez eu não estivesse fazendo o bastante.

Toda vez que eu me desenvolvia profissionalmente, embora ganhasse mais responsabilidade e novas atribuições vinham também novos confortos os quais eu preenchia com mais esforço: horario flexivel? Agora posso estudar de madrugada porque é silencio. Recesso remunerado de 20 dias no fim do ano? Vou usar pra fazer um curso, um projeto pessoal e estreitar laços com a comunidade de software livre. Férias? Vou focar no estudo de uma nova linguagem e focar em completar um projeto pessoal...

E nessa eu eventualmente atingi minha meta, me tornei Senior Developer. Entrei pra uma ótima empresa no ramo de transações bancárias, consegui mais conforto e poder aquisitivo. Poderia descansar um pouco agora, né? Não, pelo contrário: eu intensifiquei o ritmo aterrorizado pelo medo da insuficiencia, pela possível vinda de uma sindrome do impostor. Eu puxei mais o ritmo

E assim se passaram os anos...

Enquanto eu extrapolava meus limites de produtividade e estudo, e reeducava minha mente para suportar cada vez mais estresse, para absorver de forma rapida e para manter-se cada vez mais fria em situações de pressão isso também ia moldando minha vida pessoal e criando um novo eu. O tempo passava e cada vez mais esse novo eu moldava meus novos prazeres como se não houvessem consequencias.

Me considero uma pessoa de hobbies, sempre gostei de tocar violão e guitarra, andar de skate, de carros antigos, literatura, pintura e desenho... Conforme minha cabeça se reeducava eu comecei a lidar com tudo como se fossem projetos. Eu comecei a estudar violão com metas de excelencia, a praticar skate medindo meu avanço de uma semana pra outra, a ler livros de forma dinâmica pra ler com o maior aproveito de tempo possível...

Tudo isso parece muito romantico e interessante mas não é. Eu não tinha mais hobbies de verdade, eu tinha sub-projetos. Meu sistema de execução, aprendizado e ansia por excelencia era o mesmo pra todos os meus interesses. Durante os anos que eu tinha me educado quase que militarmente para super-produção e absorção de conteúdo, aplicava esse comportamenteo com absolutamente tudo que eu fosse fazer mesmo que isso tivesse custo físico ou emocional.

E o mais louco: eu não estou dizendo que dava certo com tudo, não é como se o simples fato de eu aplicar método e esforço fosse me tornar mesmo bom em tudo. De fato considero-me mediocre no violão (ta tudo bem gente rs), não sei nem a metade do necessario sobre restauração de carros, não ganhei medalhas como skatista, etc... mas eu não conseguia sair do método, fazer isso era aceitar a mediocridade, a normalidade, a inquietanta e esmagadora sensação de ser um individuo comum. Nenhum destaque, nenhum exemplo, apenas alguem.

E aí é que estão as diversas armadilhas: aquilo estava consumindo meus hobbies, transformando minha satisfação em anseio. O que aconteceu no fim? Eu transformei tudo em ansiedade, e é aqui acho que foi onde perdi a mão. Tudo era projeto e eu tinha prazer com a dor da eterna penitencia de quer ser umd estaque, dar o sangue pra ver uma meta cumprida. Era algo pessoal, as vezes uma meta secreta, pessoal e besta. Não era egolatria, era vício ou simples hábito.

A conta sempre chega

Se você entrou nesse ritmo, você deve saber que a conta vai chegar. Se vc está numa fase de estar inebriado com isso, você provavelmente esta pensando que pra vc não vai, que vc se acostuma fácil, que com vc será diferente, que é o seu momento. E tudo bem, pensar assim é parte de ser igual a todo mundo, de cometer os mesmos erros que todo mundo comete: a romantização do super heroi e a impressão de que se você não for um destaque você não será ninguém, você não terá nenhum valor.

Mas o que é exatamente essa conta? Bom, ela é a parte que o coach quantico não te conta: ansiedade, depressão, sentimento de desprendimento social, isolamento, perturbação, disturbios do sono, sentimento de descontentamento, medo irreal de não conseguir (mas conseguir o que?), burnout, dificuldade socio-afetiva... Ou seja, o seu maior projeto QUE É A SUA VIDA começou a andar mal. Parabéns, ótimo, nota dois!

Cada lugar na sua coisa

Pode ser que em algum momento você precise fazer um corre homérico para conquistar seu lugar e suas coisas, assim como eu precisei. E pode ser que você fique viciado com essa conquista assim com eu fiquei. Mas assim como eu, pode ser que você sofra os danos colaterais disso tudo também, e em algum momento note que você transformou tudo em projeto e todo prazer em resultado, e precise retomar a simplicidade das coisas.

Refletindo sobre tudo isso eu me lembrei de um livro de Ernest Hemingway: Adeus as Armas. Tem uma parte nele que eu gosto muito, eu não achei o exceto mas me lembro da ideia central. Hemingway diz que no mundo existem pessoas realmente fortes, mas que não importa o quão forte vc for a vida sempre vai dobrar você, a vida dobra todo mundo e quem ela não puder dobrar, ela quebra. E foi isso que eu pensei ao avaliar minha situação: se eu não me deixasse dobrar agora eu seria quebrado ao meio pela vida.

Depois de perceber tudo isso e de ficar triste comigo mesmo por estar feliz tendo tranquilidade mental por estar doente, eu tomei uma decisão acertiva e passei a tomar medidas práticas para me reeducar. Seria muito ironico se eu te desse uma lista super performatica de 10 itens para evitar o habito super tóxico da hiper-produtividade, mas eu não vou fazer isso. Talvez você devesse começar evitando listas de 10 coisas a se fazer? Enfim, não sei. A única coisa que posso dizer e que funcionou pra mim é essa:

Pare um pouco.

É simples assim, não tem grandes medidas, não tem grandes sacadas. Nós entramos nesse ciclo por medo do fracasso, medo da solidão e da irrelevancia, então seguimos girando a roda cegamento fugindo desse monstro que no fim nem existe. E nosso cérebro é desconfiado, não adianta eu te dar centenas de dicas e argumentos pra te convencer de que esse medo é ilusório, seu cérebro não vai acreditar, ele precisará de provas para sair desse alerta perpétuo. E qual é a prova? Para um pouquinho, faça alguma coisa que te agrada sem atribuir a isso nenhuma responsabilidade, e veja o que acontece. Pode ser o que você quiser, inclusive não fazer nada. Você precisa descobrir. Quando você parar de verdade e der um tempo pra sua cabeça você terá que tomar um segundo passo que é: voltar de onde parou. E é aí que você percebe: tudo continua lá do jeito que você deixou, você não se tornou menos, você não foi relegado a insignificancia de um ser ordinário nesse meio termo. Nada demais aconteceu. Na verdade é provavel que você se sinta melhor e por incrível que pareça: mais produtivo/a.